A frase acima, proferida por um porteiro de um clube de futebol, ao se referir ao tratamento dado pelo clube às categorias de base, demonstra como são vistos meninos e meninas que querem ser jogadores de futebol: como a carne mais barata do mercado.
No sonho pessoal de cada um, basta jogar futebol para se encontrar com a eternidade. Expressão que saltou em minha mente, depois de ver as homenagens aos meninos do Ninho do Urubu.
No país em que uma tragédia amortiza a outra, não posso deixar de registrar minha consternação profunda com o que aconteceu naquele espaço, o qual o Flamengo chamava de CT da base. É claro que a frase demonstra que o descaso não era apenas do clube carioca, mas é notório que o clube que revelou Zico teria condições de reverter qualquer situação desfavorável. Vivendo em profundas latas de sardinha, as crianças que o clube adotou para formar mercadorias vendáveis para o exterior, não tinham a real dimensão do descaso que as rodeavam. Para elas, estar ali era a realização de um sonho, o início de uma trajetória de sucessos, glórias e o mais importante: sem miséria para si e para os seus familiares.
Alguns porcos jornalistas tiveram a pachorra de dizer na televisão que, o que aquelas crianças experimentavam naquele espaço fadado ao pior, era muito melhor do que aquilo que muitas delas tinham em suas casas! Veja que animal! As crianças morreram, em um acidente totalmente evitável, de maneira horrenda e pavorosa, com seus corpos queimados pelo fogo e sufocados pela fumaça, e alguns abrem a boca para pestanejar seu rancor de classe e seu racismo: “mas eles viviam melhor do que em seus lares”. Como se elas não tivessem o direito de viver bem, como se o que o clube fizesse fosse muito e como se morrer queimado fosse melhor do que as suas origens!
É óbvio que a responsabilidade é do Flamengo! Como seria do Corinthians ou da Ponte Preta ou de qualquer outro time se tal fato ocorresse com suas categorias da base. É preciso pontuar que toda instituição que adota o filho dos outros para formar atletas para o seu bel lucro, é sim responsável, não só pela segurança, mas pela formação dessa pessoa como ser humano. Mas é essa parte que os clubes esquecem: a de que aqueles seres são mais do que futuros operários da bola em formação, são seres humanos, são gente, são crianças!
Se o Flamengo é responsável, ele não é o único culpado. Culpados são todos que deixaram o futebol brasileiro chegar nessa situação, onde meninos e meninas são vistos desde muito cedo como novilhas que irão crescer, engordar, dar boizinhos e depois serão vendidos para os açougues do mundo como carne barata, mas sempre lucrativa para enriquecer os tubarões. Há garotos e garotas que com 10 anos já estão sendo agenciados por empresários, esses verdadeiros cafetões do futebol. Como também há clubes do exterior monitorando crianças dessa idade para uma possível compra.
Sempre detestei o uso dos verbos comprar e vender para se referir à transição de jogadores, mas não existem palavras mais apropriadas do que estas para o futebol em geral. Esses verbos retratam bem o que significa os jogadores para os empresários da bola: objetos, mercadorias, gados. Esses mesmos verbos eram usados para se referir a seres humanos na escravidão.
A única coisa que difere é o sentimento e a ilusão de que os atuais escravos ganharão muito dinheiro e que poderão comprar a carta de alforria da família toda e de cinco gerações. Na prática, isso não difere de muitos escravos no Século XIX, antes da lei do ventre livre, que trabalhavam a vida toda, se dispunham a ir para a guerra para conseguir comprar a carta de alforria dos filhos. Os incêndios também aconteciam esporadicamente nas senzalas feitas de material altamente inflamável. Como coincidência, 90 por cento dos meninos que morreram no Flamengo são negros.
O que esses clubes formadores fazem pelos garotos e garotas que ali adentram, deixam suas famílias e partem em busca do Eldorado do futebol, é tudo, menos formar, isto é, educar. Formar uma criança significa você ser responsável por ela, formar também pressupõe o cuidar, já que, um indivíduo em formação não tem autonomia suficiente para decidir e zelar sozinho pela sua vida e pela sua segurança. Senão, ele não precisaria de professores, pais e responsáveis por ele. Uma criança e um adolescente não têm condições muitas vezes de analisar se sua vida está em perigo, se morar em containers é coisa de gado, se dentro deles tem material inflamável, se há apenas uma porta de saída e se o ar-condicionado foi instalado corretamente. Principalmente quando esta instituição em que ele se encontra é endeusada e idealizada historicamente e socialmente.
Para esses meninos que morreram, eles estavam no Flamengo e isso era tudo! Para as famílias também! Estar no Flamengo com 14 anos seria a mesma coisa que passar em um vestibular dificílimo e entrar numa USP ou UNESP da vida. Em suas mentes, treinar em um clube grande como o Flamengo já era uma demonstração de alpinismo social, de vitória garantida, de meio caminho andado, pois quantos meninos não gostariam de passar numa peneira dessas, vestir a camisa de um clube consagrado? Quantos meninos e meninas pelo país não estariam em piores condições que eles? Com esse discurso às vezes até pronunciado com essas palavras por gente que deveria zelá-los, o garoto poderia dormir em paz a sua noite dos justos, esperando acordar de manhã como rei.
Mal sabiam esse menino e sua família, que toda essa cantiga proferida em seu nome, esconderia o mesmo descaso que todo dia as crianças desse país são submetidas nas mais diversas esferas. Eu, como professora, já dei aula em escolas sem as mínimas condições salutares e em prédios sem alvará dos bombeiros, sem ventilação, sem bebedouros, sem extintores, sem refeitórios, sem quadras, sem pátio e com o teto desabando na cabeça de um aluno. Em situações como essa descrita, poderia fazer como muitos, dar a minha aula e rezar para que nada acontecesse e se acontecesse – culpar apenas o governo criminoso (o qual sim seria o maior responsável). Mas não, eu e a diretora procuramos conversar com os pais sobre a situação daquele ambiente e incentivamos os alunos a fazerem passeatas e manifestações, as quais renderam imprensa e notícia ao fato. Conclusão: o governo do estado de SP teve que reformar o local. Contudo, é vergonhoso sentir na pele todos os dias o tratamento que o Estado (aquele que deveria zelar pelo cumprimento do ECA) dá as crianças pobres!
Todos os adultos que tem como profissão “olhar de crianças” devem ser colocar como responsáveis por ela, tanto fisicamente como moralmente. No caso dos jogadores das bases, eles precisam ser vistos como crianças e como educandos e menos como produtos em fabricação. E se algo está errado e pode colocar suas vidas em risco, todos devem denunciar, falar ou pagarão por omissão.
As instituições precisam ser cobradas e responsabilizadas civil e criminalmente pelo o que acontece com os meninos e meninas que estão em seus cercos. Não só em questão de segurança, mas também em relação ao caráter desse indivíduo quanto adulto. Exemplo: em que medida o Santos tem responsabilidade pelas excentricidades e falta de personalidade do Neymar? Parece que o cara cresceu sozinho e nada e ninguém o ajudou a ser essa pessoa totalmente desconectada da realidade e do próprio futebol, capaz de corar de vergonha as criancinhas de 5 anos por tamanha birra que sua figura insiste projetar para o mundo.
Um clube de futebol que expatria crianças de seus pais deveria se comportar antes de tudo como um clube educador, onde o ser humano falasse mais alto do que as cifras.