Entender a greve dos caminhoneiros é algo complexo. Nesse cenário de atos, reações edesdobramentos se disseca toda uma sociedade. No fim de tudo, não se discute a greve, mas todo um projeto de país. Não são caminhoneiros, governo e militares que decidem isso e aquilo, é todo um povo que se pronuncia, para o bem ou para o mal.
Talvez os vídeos de whattsapp falem mais do que as manchetes e do que o noticiário do jornal. Eles não falam particularmente de Temer ou dos líderes sindicais. Eles falam do nosso povo, do que passa na cabeça de muitas pessoas. Alguns desses vídeos trazem ironia, outros preocupação e terror.
A greve é pelo preço do Diesel, mas os caminhoneiros se rebelam contra um país que ve diminuírem as políticas públicas. As vozes falam contra um legislativo e um executivo corruptos. As vozes falam contra um judiciário pouco confiável. As vozes falam contra tanta coisa que por vezes as muitas falas são conflitantes em seu conteúdo.
Sobre as vozes que defendem Bolsonaro ou os militares: é histórico o processo de substituição de um modelo em declínio por outro oposto ou antagônico. Hegel há muitos anos já falava sobre isso. Vivemos por 14 anos um governo de centro-esquerda. Fracassado em seu crepúsculo, viu elevar-se o poder da direita. Isto explica a predileção de muitos pelo regime militar. Explica também a popularidade de figuras com Jair Bolsonaro. Nesse período, pelo movimento de petistas e antagonistas alimentou-se uma animosidade. Epítetos como “ coxinha” ou “ mortadela” são excludentes e falam por si. Não permitem o olhar isento, afastado de ambos os extremos. Ambos os lados tem a sua culpa. A classe média de novo trabalhou como formadora de opinião. Surgiu uma rejeição ao PT que está nas pesquisas de opinião, que se estende, de uma forma ou de outra, à toda a classe política. Parte daqueles que gritam pelos militares são movidos por esse ódio apolítico. Parte das vozes é impregnada dessa intolerância que não avalia a história de forma fria, não acompanha os altos e baixos de um partido, a sequência natural que acompanha todas as nossas legendas políticas. Esta é uma das características mais evidentes do movimento: a rejeição a todo o legislativo. Se existe algo de positivo na greve, e existe, esta essência esta no inconformismo, embora estrábico, e são muitas as razões para isso.
Importante de novo que se diga que não assistimos o fracasso de um modelo político, mas de um partido. Não foi a esquerda que provou-se inapta, mas o modelo político PT-MDB, e aqui coloco a ambos, amalgamados, porque foi assim que estiveram por 14 anos. Os avanços nas políticas sociais, na qualidade do ensino superior, no controle de subsistemas com agencias reguladoras e em tantas outras áreas foi inegável. Pecaram, entretanto, por alimentar-se dos vícios da antiga direita, numa mal velada corrupção que fez ruir as instituições. Instituições como a Petrobrás, que agora cobra tão cara a gasolina e o diesel. Pecaram por ingerência, no fim do governo Dilma. Inaptidão administrativa que só fez aprofundar a crise. O pecado, visto com isenção, não é mais grave do que o de tantas outras legendas que se perderam. É a história natural de nossos partidos. Importante enaltecer o passado. O PT muito fez anos atrás, de novo repito, e seu distanciamento também faz crescer a crise. Não é aqui o espaço para esse tipo de reflexão, mas verdade é que a esquerda se reinventa. É só buscarmos entender fenômenos como Freixo, como Boulos e, além deles, como Marielle ( todos do PSOL, diga-se de passagem).
Quem diria: os caminhoneiros foram antes contra Dilma e, agora, se movimentam contra a Temer. Porque ocorre isso? Porque as motivações do povo vão além dos desejos da classe média. Elas não se escoram em legendas. O povo é o primeiro a sentir a acentuação da desigualdade.
A via militar é e sempre foi um erro. Um país que não reconhece a importância da liberdade de seus entes é um país sem personalidade. Apenas uma sociedade fraca não decide por sí mesma. Muitos querem essa triste via. O abraço paternal. O tirano que decide por todos. As mazelas que vemos não são de um grupo específico, políticos, juristas, ou outro, mas de toda uma sociedade. Falamos de uma sociedade com muitos vícios, mas enfim, de uma sociedade jovem. Não existem soluções imediatas para isso.
Frente à tantas mostras de simpatia e apoio aos militares cresce uma dúvida: existe o risco de um golpe militar? A sociedade toda está fragilizada. Sérios são os problemas de abastecimento. Complexas as dificuldades logísticas, porque um país não vive sem combustível. Sim, é o momento propício. Junto à instabilidade o presidente, de novo, aciona os militares. Chama os tanques às ruas. Um golpe neste contexto não seria um movimento difícil. Talvez, no caos impetrado, não experimentasse resistência. Porém, felizmente, não é desta forma que pensam os líderes das forças armadas. Triste isso, mas dependemos da opinião deles. Há meses se pronunciaram, e de novo se posicionaram no começo da greve. Vejo também uma sociedade que tem muitos problemas, mas que amadureceu sobre vários aspectos. Recentemente temos rejeitados as vias antidemocráticas tão recorrentes entre nossos irmãos sulamericanos. Apesar da ausência de líderes, muitas são as vozes organizadas no nosso povo, vozes que falam pelo bom senso e pela diminuição das diferenças.
Enfim, que depois da greve a nossa sociedade saiba colher os frutos positivos desse movimento, alimentando o inconformisto e o tão esquecido sentimento de cidadania. O povo sempre se manifesta com intensidade. Para entender melhor o contexto, vale citar a letra do sambista Wilson das Neves: “O dia em que o morro descer e não for carnaval”.