
Na Bahia, a violência policial contra corpos negros chegou a níveis alarmantes. A ação intervencionista da polícia nas favelas e periferias, sob a justificativa do combate ao narcotráfico, tem resultado na dizimação e encarceramento em massa de indivíduos – em maioria, jovens negros. Estamos vivendo, dia após dia, uma guerra silenciosa nos territórios periféricos baianos, invisibilizada pelos meios de comunicação hegemônicos. Embora o Estado insista em afirmar que a guerra é contra as drogas, não há como ignorar os marcadores sociais que forjam os jovens negros como os inimigos de fato dessa guerra.
O último caso de ação violenta da Polícia Militar da Bahia (PM-BA) aconteceu nesse domingo (13), em Salvador, e teve como resultado a morte de uma jovem negra de apenas 19 anos. Ana Luíza Silva dos Santos de Jesus foi morta com um tiro na barriga durante uma operação da PM no bairro da Engomadeira, em uma localidade periférica conhecida como Baixa da Nanã. De acordo com familiares, Ana Luíza havia saído de casa para levar uma marmita a uma amiga e retornava quando foi baleada. A polícia alegou “troca de tiros”, mas a família contestou a afirmação e declarou que a ação foi sem precedentes: “Eles chegaram atirando, e não havia nada que justificasse os disparos. O bairro estava tranquilo”, disse uma parente da vítima.
Logo após o ocorrido, policiais ainda lançaram bombas e agrediram familiares e vizinhos que, em luto e revolta, apenas exigiam justiça pela morte de Luíza. A repressão brutal, típica de um Estado que trata a dor do povo como ameaça, só fez aumentar a indignação da comunidade. Diante da violência, moradores ocuparam a Estrada das Barreiras — principal via de acesso ao bairro da Engomadeira — em protesto. Pneus e objetos foram incendiados e dois ônibus foram atravessados na pista, interrompendo o tráfego. Era o grito desesperado de quem já não aguenta mais enterrar seus filhos, irmãos e vizinhos sem sequer ter o direito de questionar. Até quando a resposta do Estado à dor será mais violência?
Ana Luíza, como milhares de outros jovens negros que tiveram suas vidas brutalmente interrompidas na Bahia, era uma pessoa comum, cheia de sonhos e planos. Estudava Estética e Cosmética em uma faculdade particular de Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador. Em entrevista comovente, seu pai não escondeu o orgulho que sentia da filha: “Era uma pessoa maravilhosa, estudiosa, ‘tava na faculdade, fazendo o 3º semestre de Estética. Hoje mesmo era dia dela ir pra faculdade dela. Sempre alegre, sempre estudou… só nos deu orgulho”. Ana Luíza deixou para trás uma família amorosa, agora devastada pela dor de uma perda inexplicável. Sua morte é revoltante, absurda, e evidencia o quanto vidas negras seguem sendo tratadas como descartáveis neste país. Uma vida cheia de possibilidades foi arrancada sem justificativa, como outras milhares também são na Bahia. Mais uma vez o sangue negro escorre pelas vielas enquanto o silêncio do Estado ecoa como afronta.
Uma vizinha da vítima chegou a dar um depoimento emocionante sobre o caso: “Não temos dinheiro pra morar no Alphaville, não temos dinheiro pra morar no Corredor da Vitória, somos jovens periféricos, estamos sujeitos às pessoas que são seres humanos que apenas usam uma farda e estão tirando a nossa vida banalmente. Toda a tese é troca de tiro”, desabafou. A fala irretocável de uma mãe de três filhas representou a revolta de toda uma comunidade. “Eu só quero perguntar, cadê a empatia do ser humano? Cadê o amor do ser humano? […] Hoje, eu estou sentindo uma dor imensurável no meu peito, porque essa menina era minha cliente, a minha vizinha de porta. E agora eu pergunto, Estado, como é que fica? Mais uma na estatística? […] Uma filha única, uma história interrompida, uma menina que fazia faculdade de Estética. Destruíram uma família”, disse a vizinha.
E continuou: “Uma mãe chora, um pai chora, uma família, uma comunidade chora, porque tiraram uma filha e alegam dessa forma que foi um tiroteio […] Eles passaram pelo corpo como se fosse nada”.
Esse relato demonstra a necessidade de se discutir a militarização da polícia. A lógica militar transforma a atuação policial em um mecanismo de opressão, onde o cidadão — sobretudo o negro e periférico — é visto como inimigo a ser combatido, e não como alguém a ser protegido. É revoltante ver como a presença policial, que deveria proteger, se transforma em instrumento de medo. Esse cenário se repete em todo Brasil, mas na Bahia atinge proporções alarmantes: a Polícia Militar do estado é a que mais mata em todo o país. Hoje, o território baiano é o carro-chefe do genocídio negro no Brasil. 95% das milhares de pessoas mortas pela Polícia no estado são pretas e pardas, aponta a Rede de Observatórios de Segurança. Salvador lidera o ranking de chacinas no estado, com 63 ocorrências registradas desde 2022, das quais 46 foram resultado de operações policiais. A jovem Ana Luiza é a sétima mulher executada a tiros este ano na capital baiana, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado. Só em março, três mulheres foram vítimas, nos bairros da Paralela, Vale das Pedrinhas e Narandiba. Ao todo, ao menos 50 pessoas foram assassinadas pela polícia baiana neste mês, em chacinas promovidas em Salvador e no interior do estado, de acordo com um levantamento do G1.
O governo de Jerônimo Rodrigues (PT), dando continuidade à gestão anterior de Rui Costa (PT), tem operado uma política de segurança pública que transformou a Polícia Militar da Bahia em uma verdadeira máquina de matar. Apesar de estar há quase duas décadas sob comando do Partido dos Trabalhadores, é alarmante observar como a Bahia tem sido governada com práticas que se assemelham às da direita, como ocorre em estados como São Paulo e Rio de Janeiro. Não podemos deixar de responsabilizar o Estado por essa política de morte. Ao legitimar a repressão violenta da polícia e fechar os olhos para o genocídio em curso, o governo se torna cúmplice e atua na produção e manutenção dessa violência sistemática.
É preciso urgentemente discutir a naturalização da violência na Bahia. Enquanto uma guerra acontece no estado, os grandes meios de comunicação seguem ignorando essa realidade, dando visibilidade apenas aos casos que ocorrem no eixo Sudeste. Esse silêncio midiático também mata. É preciso denunciar, resistir e organizar-se politicamente. A militarização tem devastado nosso estado e exterminado incontáveis corpos negros.
A Bahia é o estado mais negro do Brasil e Salvador a cidade com maior população negra fora de África. Nosso povo e nossa herança africana precisam ser cuidados. É inadmissível que o poder público siga promovendo uma política de segurança que transforma pessoas negras em alvos preferenciais do Estado.