Por: Maria Neta*
Começamos pelas letras. Elas dão vida às palavras, que constroem frases, e estas, por sua vez, compõem nossa percepção de mundo. É assim que mergulhamos na linguagem, no conhecimento e nas ideias que moldam nossa existência. Mas há um caminho igualmente vital a ser trilhado: o do letramento racial. Por que é tão necessário nos educarmos racialmente? Porque carregamos uma herança histórica que precisa ser reconhecida, compreendida e vivida. Nossa ancestralidade exige a reparação de uma dívida histórica há muito negligenciada.
O letramento racial é mais do que um conceito; é uma ferramenta transformadora. Ele nos ensina a identificar, entender e combater as questões raciais, incluindo o racismo e suas raízes históricas, bem como suas consequências profundas na sociedade. Educação, conhecimento e afetividade são pilares estratégicos para construir um caminho ético e moral que sustente essa habilidade.
No Brasil, a aplicação das Leis 10.639/03 e 11.645/08 nas escolas deveria ser a base para universalizar esse entendimento desde cedo. Estas legislações, que tornam obrigatória a inclusão da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nos currículos escolares, são fundamentais para enfrentar a realidade histórica e estrutural que perpetua o racismo em nosso país. Contudo, a prática ainda está longe de corresponder à teoria.
O tema da redação do ENEM de 2024, “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”, trouxe à tona a urgência de implementar efetivamente essas leis. Apesar das intenções declaradas, o que temos hoje são medidas pontuais e insuficientes. A temática racial ainda é tratada de forma superficial, limitada ao mês de novembro e a datas comemorativas. É imperativo que se consolidem diretrizes que incluam, de maneira concreta e permanente, o ensino da História Afro-Brasileira e Indígena nos currículos escolares.
Mais do que atender a exigências legais, o verdadeiro desafio está em superar os estigmas que envolvem ações afirmativas, como as políticas de cotas. Tais iniciativas têm como objetivo estabelecer gradualmente um patamar de equidade racial. No entanto, alcançar essa meta requer superar resistências e preconceitos que ainda permeiam nossa sociedade.
Caminhar por novas perspectivas sobre o papel do negro no Brasil é um dos grandes desafios. Ao discutir ações afirmativas e normas legais, frequentemente se foca no combate ao racismo como um ato reativo. O ideal, porém, é ultrapassar essa abordagem defensiva e construir uma narrativa de protagonismo, autonomia e orgulho racial.
O desempenho dos candidatos no ENEM será um reflexo direto das escolhas pedagógicas feitas pelas escolas. O nível de compreensão dos estudantes sobre a temática racial evidenciará um verdadeiro raio-X do Brasil em relação à sua História Afro-Brasileira e Indígena. Será um termômetro que mostrará até que ponto estamos avançando – ou estagnando – na inclusão e no reconhecimento de nossa diversidade cultural.
Chegou o momento de transformar intenções em ações, ideias em prática, e leis em realidade vivida. O letramento racial não é apenas uma ferramenta; é um chamado à consciência, um convite para construir uma sociedade mais justa, inclusiva e fiel à riqueza de sua própria história.
Texto: Maria Neta
Imagem: Divulgação
Revisão e edição: Tatiana Oliveira Botosso
* Maria Neta é advogada formada pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), pesquisadora em Raça e Justiça, possui mestrado pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e é doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Contatos: www.marianetaadvogada.com Instagram @marianeta.adv