A nova contradição brasileira: a periferia aliada da direita e a classe média alta à esquerda
O cenário político brasileiro vive uma inversão inédita: as periferias, que historicamente apoiavam a esquerda, hoje se aproximam da direita. Enquanto isso, setores antes alinhados com a direita, como a classe média alta dos bairros de Santa Cecília e Faria Lima, mostram um engajamento crescente com pautas progressistas e à esquerda. Com dados, históricos e análises de especialistas, tentamos entender o que levou a essa mudança e refletimos sobre o impacto dela nas vidas dos cidadãos.
O apoio da periferia à direita: como e por que isso aconteceu?
A chegada de figuras da direita nas periferias não é acidental. A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 e sua reeleição com forte apoio popular nas comunidades periféricas foi um marco nesse processo. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nas eleições de 2022, o presidente Jair Bolsonaro teve 55% dos votos em comunidades periféricas como Paraisópolis e Heliópolis, em São Paulo, e em comunidades cariocas, como Rocinha e Complexo do Alemão, enquanto Lula registrou uma média de 42% nesses mesmos locais. Em outras palavras, mais da metade dos eleitores dessas áreas escolheram um candidato que defendia políticas de segurança pública severas e retóricas de combate ao “inimigo”, mesmo quando isso afetava diretamente a população das quebradas.
Essa inversão reflete um desencanto com a esquerda tradicional, que, nos anos 80 e 90, construiu uma base forte nas periferias através de associações de moradores, núcleos da Igreja Católica, movimentos de base comunitária e lideranças locais. Esses espaços, outrora centros de resistência e organização popular, estão desatualizados ou desapareceram, deixando um vazio que a direita rapidamente preencheu.
A falta de representação da esquerda nas periferias
No passado, a esquerda liderava associações e organizações de bairro, trabalhava em parceria com as igrejas, e tinha uma presença ativa nas discussões da comunidade. Essas lideranças, muitas vezes vindas das próprias quebradas, eram reconhecidas por lutarem por moradia, saneamento básico, transporte e direitos trabalhistas. No entanto, com o tempo, a estrutura da esquerda se enfraqueceu. As lideranças envelheceram, os projetos perderam força, e o vínculo com a base foi rompido.
Enquanto isso, a direita soube ocupar esse espaço com propostas pragmáticas e diretas. A retórica da segurança pública e da ordem, personificada pela figura do policial ou do militar, conquistou a confiança das periferias, que viam na repressão uma suposta solução para o cotidiano violento e desestruturado que viviam. Porém, essa aliança é paradoxal: muitos dos policiais eleitos vêm das forças de segurança que, na prática, entram nas favelas para violentar, e não para proteger, como no caso de operações policiais que frequentemente resultam em mortes de inocentes e crianças.
A hipocrisia do discurso da direita: ordem, justiça e “segurança” para quem?
A incoerência é clara, ao mesmo tempo que as lideranças da direita prometem segurança, muitas de suas ações alimentam o ciclo de violência que afeta a vida nas quebradas. A narrativa religiosa também reforça essas contradições. Pastores, que antes pregavam o perdão, a compaixão e a ressocialização, hoje são vozes que pedem penas severas, inclusive a pena de morte, defendendo um rigor implacável contra os “criminosos”. Este novo discurso não poderia ser mais contraditório com a mensagem bíblica: Jesus pregou o perdão e a compreensão.
Em Mateus 7:1-2, Jesus ensina: “não julgueis, para que não sejais julgados. Pois com o julgamento com que julgardes sereis julgados, e com a medida com que tiverdes medido vos medirão também”. Essa passagem aponta a incoerência entre o discurso punitivista atual e a tradição cristã do amor ao próximo e do acolhimento. Enquanto isso, nos presídios, a presença das igrejas evangélicas cresce, com trabalho de ressocialização, ajuda espiritual e apoio psicológico. A questão é: como os mesmos pastores que pregam compaixão dentro das prisões defendem discursos de punição e violência para os cidadãos que vivem fora delas? Essa hipocrisia atinge a periferia de forma crua e direta.
Dados e análise: onde a direita cresce e a esquerda enfraquece
Estudos sobre o comportamento eleitoral nas capitais brasileiras mostram que, em locais de maior renda e escolaridade, o apoio à esquerda tem crescido de maneira consistente. No bairro de Santa Cecília, em São Paulo, Lula teve 68% dos votos em 2022, enquanto Bolsonaro obteve apenas 30%. Da mesma forma, na região de Pinheiros, Lula recebeu 58% dos votos, contra 35% de Bolsonaro. Em contraste, nas comunidades da Zona Leste de São Paulo, Bolsonaro manteve uma liderança de 60% em relação a Lula.
Esses dados ilustram um novo padrão de alianças e mostram que o discurso da direita tem maior apelo em regiões onde as políticas de segurança são uma questão de sobrevivência imediata, mesmo que essas políticas venham acompanhadas de violência policial e repressão. Para muitos moradores dessas áreas, votar em um policial ou militar representa uma promessa de ordem, mesmo que tal promessa venha carregada de agressão e medo.
Por que a periferia escolhe candidatos que não representam suas vidas?
Uma pergunta importante é: por que a periferia apoia representantes que não compartilham de suas realidades? Esse fenômeno, segundo o cientista político Alberto Almeida, pode ser atribuído ao impacto do discurso de meritocracia e ao culto do “self-made man” que a direita explora tão bem. Milionários são vistos como “vencedores” que souberam “se levantar pelo próprio esforço”, e a periferia, frequentemente sem oportunidades reais, identifica-se com essa narrativa, mesmo quando ela é usada para justificar a falta de políticas públicas.
Ao eleger milionários ou figuras da elite, a periferia compra a ilusão de que, se eles conseguiram, todos podem conseguir. Essa visão ignora o sistema que perpetua a desigualdade, mas oferece uma esperança vazia que, para muitos, é mais atraente do que as promessas da esquerda de igualdade e justiça social.
A urgência de recuperar o debate e conscientizar
O distanciamento da esquerda das periferias e o pragmatismo da direita criam um ambiente perigoso. As comunidades estão votando em candidatos que, no futuro, podem implementar políticas de repressão e de corte de direitos que impactarão diretamente sua qualidade de vida. A esquerda precisa urgentemente retomar o trabalho de base, com novas lideranças, novas narrativas e políticas que façam sentido para a população.
É necessário repensar as estruturas de representação e apoio nas periferias, fortalecendo associações, ampliando o diálogo e construindo políticas que reflitam a realidade local. Mais do que nunca, o debate sobre representação política nas periferias precisa ser ampliado, para que a população compreenda o impacto de suas escolhas e a importância de eleger líderes que verdadeiramente defendem seus interesses.
A importância de escolher representantes de verdade
As eleições são um espelho da sociedade e mostram que a periferia precisa de alternativas de representação que estejam alinhadas com suas realidades e que combatam a desigualdade e a violência institucional. A escolha por candidatos alinhados com o retrocesso de direitos adquiridos e o aumento da opressão e do elitismo é um caminho perigoso que reforça o ciclo de exclusão. Que as periferias possam, mais uma vez, encontrar vozes que reflitam suas lutas e suas esperanças, para construir um Brasil onde todos tenham, de fato, voz e vez.
Revisão e edição: Tatiana Oliveira Botosso