Lima Barreto é mestiço que nasce e morre no Rio de Janeiro. Seu percurso de vida vai de 1881 a 1922 e, apesar da curta duração, legou-nos obra que é das mais importantes de nossa literatura. O melhor de sua educação encontrou-o na escola, mas também em casa e na leitura. A mãe era professora de formação e o pai, um tipógrafo que gostava de ler e marcou o filho com o hábito. Marcou-o também com o nome.
O escritor é em seu batismo Afonso Henriques, em parceria primeiramente com o padrinho[2] e, depois, com o pai. Com ambos também estabelece parceria no apego ao Rio, cidade que Lima personifica em seus escritos, transformando-a em sua principal referência. Nela, estão os negros e mestiços com os quais ele se identifica, com os quais se irmana. Em sua vida e literatura, o lugar social desta gente (e, na extensão, o seu lugar) é a sua preocupação. Por isto, sua obra inquire a Abolição e a República, pedindo-lhes respostas.
Neste diapasão, a assinatura da Lei Áurea será contada pelo escritor. Em verdade, é uma das lembranças de sua infância. O pai o levará para assistir à confirmação do ato, e o menino registra o acontecimento. À distância e em meio a grande multidão, há um palanque. Nele, estão autoridades civis, religiosas e Isabel, a princesa. Uma missa campal se desenrola e dela as autoridades mencionadas e o povo participam[3]. No ato, todos celebram a extinção de uma prática que, entre nós, fora mais que secular. Em verdade, com ela – a escravidão – convivêramos por mais de trezentos anos. Para muitos, sua abolição era um grande suspiro de alívio. No episódio, Lima e o pai estão entre a multidão e também entre os aliviados. Bem de perto, sentiam o quanto a pele negra pesava. Apesar de os Lima Barreto já serem bem assimilados, sabiam que, no país, vivia-se o estigma da cor. Sabiam ainda que, no mesmo país, até há pouco, vivera-se a escravidão racial[4].
O pai – João Henriques de Lima Barreto – nascera livre, mas vinha de famílias que sofreram o cativeiro. Devido a seu empenho e gozando de certo apoio, enveredara pelo ramo das profissões liberais. A vida na corte ofertava possibilidades para isto. João, como já se disse, era tipógrafo de formação e de exercício profissional. Sabia ainda escrever com domínio e lia em português e em francês. Frequentara escolas noturnas. Em língua francesa, escreveu um manual de tipografia de alguma relevância nos anos 1870. Seu escrito circulou e repercutiu, levando-o a certo prestígio entre os seus pares. Sua diplomação escolar, todavia, chegava ao nível médio de sua época, sendo muito mais o seu ambiente de trabalho quem o levara aos livros e à leitura. Neste sentido, parte de sua vida coincide com fatos da vida de Machado de Assis que, na juventude, também fora tipógrafo e recebera apoio de amigos deste ramo e do jornalístico[5].
Em sua vida cotidiana, João Henriques também se aproximou de figuras da política. Afonso Celso, o futuro Visconde de Ouro Preto[6], foi uma dessas relações. A proteção do amigo político que receberia o título nobiliárquico leva-o para trabalho na Tipografia Nacional, também espaço no qual labutara Machado. As circunstâncias de vida trazem ainda Afonso Celso e João Henriques ao compadrio. Para o estreitamento da relação, o convite parte de João Henriques e o vínculo entre os compadres será o menino Afonso que nasceria em 13 de maio de 1881. E com o crescimento do Visconde na política, também se destacam, é claro, os amigos e apoiadores. Estas práticas e representações são velhas conhecidas e, no nosso século XIX, típicas de uma sociedade do favor. João Henriques está muito próximo das lembranças da escravidão. Antes do 13 de maio, sabe-se, elas apavoraram a muitos libertos e mesmo a gente já nascida livre[7].
Devido ao fato, ficar próximo de figuras destacadas é, à época, atitude comuníssima. Elas, de algum modo, emprestam muito do seu prestígio, abrem caminhos. Em palavra última, atestam a liberdade ou a condição de assimilados de alguns entre os muitos que as circundam. Entre nós, esta situação foi bastante corriqueira nas práticas de gente liberta ou que nascera livre. Num país onde houve distinção mesmo entre os escravizados, a prática é constante. Lembremo-nos da distância entre escravos nascidos no Brasil e africanos no cativeiro. Ela era grande e praticada pelos escravos brasileiros, em espécie de jogo entre ladinos e boçais. É expressão de uma sociedade na qual a África é a incivilidade e o deserto[8]. Os predicados são os conceitos que, à época, definem para os ocidentais o continente negro e, nos anos 1880, o que justifica sua divisão à revelia. A Conferência de Berlim[9] se encarrega do fato e garante a posse como natural.
A distinção é ainda expressão de uma sociedade na qual hierarquia é palavra de ordem. Por isto, ela se perpetua em nosso século XIX e em um estilo de vida que é escravocrata e estimula a política da submissão, do favor, do compadrio e outras. A distinção perpetua-se ainda em um Estado onde a cidadania é direito de poucos, tal como a ideia de democracia. Na sua vez, estes poucos são os que detêm o grosso da renda e a posse direta ou indireta de pessoas, escravizadas ou não[10]. A mesma distinção aflora ainda em um Estado sem políticas sociais de inclusão, fatos do Império, mas também da República até bem recentemente. Entende-se assim que a ligação de João Henriques a Afonso Celso seja uma necessidade. Na mesma correlação, compreendem-se as tensões do pai de Lima na queda política do Visconde quando este em 1889 perde a chefia do ministério. Compreendemo-las ainda mais quando se chega à República proclamada[11].
Nesta sociedade, entendem-se também outras atitudes. Uma delas é não fazer referências às origens. Os que querem se dar ares de assimilados vivem esta prática. Vivem, então e obviamente, um silêncio praticado por muitos e mesmo por gente de expressão no episódio[12]. No Império ou mesmo depois, a busca de uma “melhor” expressão social também leva assimilados a se vincular a casamentos de certa conveniência. O fato não fica na prerrogativa apenas de ricos e proprietários. Interesses movem a membros de outros segmentos, mesmo sendo o XIX o século do casamento por amor. A peculiaridade com certeza está na gênese do casamento entre João Henriques e Amália Augusta em fins da década de 1870. Mais uma vez, o apoio vem de Afonso Celso, e os arranjos se fazem, indo o casal, após o enlace, morar nas Laranjeiras, endereço promissor, já que bairro de alguma vizinhança aristocrática.
Se João, entretanto, é quem apresentamos, Amália, na sua vez, é a mestiça, filha de pai branco e médico e senhor da avó materna de Lima Barreto. O reconhecimento da menina como filha legítima não se dá, mas ela nasce livre e recebe formação escolar bancada pelo genitor. Amália torna-se, como já se disse, professora primária, a quem o pai facultou escolaridade e trabalho. Após o casamento, a moça será proprietária de uma escola de primeiras letras para meninos e ministrará aulas. Em concomitância, será dona de casa e mãe, vivendo a dupla jornada tão em voga ainda nos dias de hoje. Os filhos rapidamente virão. Foi mãe de quatro, sendo o primeiro deles Afonso Henriques, o futuro escritor. Nas circunstâncias sociais do episódio, surgia como a companheira adequada. Nutria sonhos de vida melhor e uniu os seus aos do marido. A crença na ascensão social pela educação era na casa um mote e uma defesa.
Ela e o marido, por isto, incutiram no filho mais velho o gosto pelo livro e pela leitura. Também viveram a crença no título universitário, no Brasil da época desejo transformado em fetiche. Um título naturalmente se contraporia à origem humilde e abriria portas. Seria ainda a vitória merecida de um casal empenhado em sacrifícios. Em uma sociedade de bacharéis e de maioria desvalida, ao menos um na família deveria ter título. Lima, o mais velho dos filhos, foi o escolhido para o obter e o portar. A situação de varão e primogênito facultava-lhe a precedência, mesmo que isto implicasse o preterimento dos demais filhos. Sua conquista como que remiria a todos daquele núcleo familiar. Atrás do título, poderia se ocultar um pouco do pardo, do tom azeitonada da família, em observação posterior de Lima sobre sua cor. O título é mostra da civilidade, do mestiço assimilado, integrado[13].
Compreende-se, por isto, o tom depressivo, mas também de certa revolta que domina o caráter de Lima, quando a ele se apresenta a impossibilidade de conclusão do seu curso universitário. O diploma de engenharia faria a diferença e para melhor. Não o ter é falhar consigo, com a família, com o padrinho que lhe abrira as portas do antigo Colégio Pedro II e as da Escola Politécnica. Lima, entretanto, é quem sabe de sua necessidade de trabalhar. Ante o pai que enlouquece e é aposentado compulsoriamente, o primogênito tem de se tornar o arrimo da casa. O ano é o de 1904, episódio no qual ele inicia o seu diário – Diário íntimo, na publicação da década de 1950. É ainda o início dos seus desabafos escritos que indicam sua frustração ante o fracasso de um projeto familiar e seu. Quebra-se assim o sonho da assimilação mais entranhada, no fundo postura tradicional, conservadora, afinada com a ordem estabelecida.
Seria ainda o anseio de gente que quer saber o seu pertencimento, ensinada a exigir de si, fato próprio da educação pequeno burguesa. Seria também o querer de gente que de algum modo se culpa por sua cor. Seria o drama de famílias que pertencem a setores médios baixos e sentem mais fundamente os baques econômicos – fatos constantes nos inícios da República. Seria a interioridade de gente que conhece o medo das oscilações sociais, que vive do picado, do miúdo, do dinheiro contado. Seria o quadro social de vidas de arrabalde, condição que Lima e sua família abertamente assumem, indo morar no subúrbio. Seria também a situação negativa que se consolida após o trabalho na Colônia de Alienados, onde o pai fora administrador, cargo de exigências e de relativa importância. Seria ainda a nova vida que se explicita após a infância de Lima, episódio no qual a família, em fumos de promissão, morara nas Laranjeiras, fora vizinha de Isabel – a princesa.
Grande por isto é a insatisfação de Lima. A nova vida, as novas obrigações são um grande choque de realidade. O paulatino mergulho na bebida será resposta à situação, ao peso das exigências. Para o moço que sonha, o adeus ao diploma de engenheiro vai encaminhá-lo a mágoas fundas. Piorando o fato, virá o fardo da rotina do trabalho burocrático e público. Iniciar-se-á a vida do escrevente concursado do Ministério da Guerra, a vida do filho que tem dificuldades em voltar para casa e encontrar o pai tocado pela loucura, mas pai a quem Lima muito ama. Há ainda os irmãos a conduzir e a segunda família de João com a qual Lima não se coaduna. O escrevente incomoda-se com ela. Há uma distância entre eles. Prisciliana – a nova companheira – não é a mãe professora, falecida já há tempos[14], e seus filhos pertencem a outro nível. Segundo o escritor, eles estão aquém dele e de seus irmãos[15] e o fato o incomoda.
A cultura do rapaz indica os limites, as diferenças, mas a habitação, esta é a mesma em Todos os Santos. A própria residência passa a ser deste modo um espaço de confrontos e dicotomias. Há entre seus habitantes distâncias e divergências. Os próprios vizinhos percebem a situação e se manifestam quanto a ela. Os gritos do pai e os dos meninos de Prisciliana tornam a residência “a casa do louco”. Já Lima e sua biblioteca tornam-na no bairro “a casa dos livros”[16], em tom de certa magia. Depois, será “a casa do escritor”, a quem se avista pela janela, quando este em seu quarto lê ou escreve. Mais à frente, Lima a chamará de “quilombo”, designativo que muito sugere. Com ele, significados positivos aflorarão, mas também outros nada tranquilos. Um deles é a ideia de refúgio. Todavia, refúgio de malditos, tal como de resto malditos são todos os suburbanos segundo o escritor. Por isto, voltar a casa é necessário, porém sempre dolorido.
Não bastassem todos estes fatos, lembremo-nos ainda de um Lima Barreto premido por valores de época como o determinismo racial. Segundo crenças correntes, a humanidade estava dividida em raças. Entre elas e variações, negros e mestiços seriam naturalmente mais propensos ao desvio. Na genética, estariam mais vocacionados ao crime em geral, ao assassinato em particular. No episódio, Sociologia e Biologia, para exemplo, falam ainda em negros e mestiços como naturais portadores de uma sexualidade mais agressiva. Com frequência, são apontados pela imprensa como estupradores. Na sua vez, outras estereotipias fazem Lima estar em luta diária consigo e representar no meio que o cerca uma contradição. Mesmo não acreditando em determinismos, mesmo não credenciando a inferioridade dita natural de alguns[17], como superar a si próprio, sendo mestiço? Como saber-se superior ao alcoolismo, sendo um alcoólico?
Em meio a este dilema, surge a vocação de escritor que Lima abraçará, vivendo-a no jornalismo com suas crônicas, mas também com contos e romances que chegaram à publicação. Em nossa leitura, é a resposta à vida pequeno-burguesa fracassada. Esfumou-se o engenheiro, mas surgiu o escritor e não qualquer escritor. Em sua literatura, os vínculos são os do compromisso com questões sociais, os do engajamento. Deste modo, seu espaço de vida se transformará em espaço romanesco. O transporte, contudo, não o desviará da boa ficção. Seu universo literário dialoga com mestres. Dostoievski (1821 a 1881) e o Aluísio Azevedo (1857 a 1913) naturalista acenam de suas páginas. Seu mergulho na vida suburbana, entretanto, é algo só seu. E neste mesmo universo, pontificam o negro e o mestiço, mas sem que isto seja uma imposição. Em Lima, focalizar o subúrbio é visualizar a pobreza e suas cores, todas matizadas de negro.
Na extensão, curiosamente Lima vive um diálogo com o Brasil, em metonímia representado pela capital da República, fato que, na história de nossa literatura, se torna um critério. Nossa história literária constata que a mesma ação fora procedimento de outros. O Brasil representado pela parte está em Euclides da Cunha (1866 a 1909). Encontra-se ainda em Monteiro Lobato (1882 a 1948) e em Graça Aranha (1868 a 1931). O critério os une e os leva a compor o conjunto dos grandes narradores do nosso Pré-modernismo. Pensamos que, para serem do Modernismo, faltou-lhes o contato com as vanguardas, com sua linguagem de rompimento. O fato, entretanto, não lhes pesa como demérito. Os quatro querem saber o que é o Brasil, mas já sabendo que ele não é unidade. Na parte, Lima busca-o na linha sinuosa dos subúrbios cariocas. Em paralelo, busca-o ainda na miríade das cores de um país mestiço que solicitava e solicita maior inclusão social.
Em Lima, a consciência social é fato candente e suas posturas políticas estão todas mais à esquerda. Seu texto, contudo, não é panfleto, mas sim militância, palavra que em seus escritos se confunde com resistência. Por isto, ele traz à cena muitos desvalidos, todos congregados sob as dificuldades cotidianas da existência e a maioria deles sob o estigma da cor. Na extensão dos fatos, também traz à cena uma inquirição: há lugar para nós nos projetos de nossa República? A maioria de seus personagens dirá que não e nem todos são negros. Policarpo Quaresma é um destes e certamente em coro com o Jeca de Lobato e o sertanejo de Euclides. Estará também em coro certo com republicanos mais jacobinos. É o caso de Silva Jardim, retirado da cena política devido às suas posturas críticas em relação a uma República que se proclamara ao som da Marselhesa e falando em direitos sociais no centenário da grande Revolução Francesa[18].
[1] Professor de Língua Portuguesa e suas literaturas. Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo. juarez.ambires@yahoo.com ; http://lattes.cnpq.br/5231846291164013.
[2] Os nomes de Machado – Joaquim Maria – vêm dos padrinhos e os homenageiam: Joaquim Alberto de Souza da Silveira e Da. Maria José de Mendonça Barroso, a proprietária da grande chácara do Morro do Livramento e patroa da costureira açoriana, mãe do escritor. P/ cf. busque-se: Magalhães Júnior, Raimundo. Vida e obra de Machado de Assis, v. 1: aprendizado. 2ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.
[3] Há, no Instituto Moreira Sales, fotografia deste episódio à qual vale recorrer. Nela, grande população está reunida no Paço de São Cristóvão, onde a Lei Áurea foi assinada e onde ocorre a missa campal de 17 de maio de 1888.
[4] Sobre estes fatos seguimos as observações de Alberto da Costa e Silva.
[5] Paula Souza é um deles; os jornais, na sua vez, a Marmota Fluminense e o Correio Mercantil.
[6] Afonso Celso de Assis Figueiredo – 1836 a 1912. Alçado a Visconde em 13 de junho de 1888. Durante 1889, foi 1º Ministro do império.
[7] P/ cf. busque-se: Chalhoub, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Cia das Letras, 2012.
[8] Imagens difundidas do norte da África pela cartografia francesa garantem a circulação da ideia e sua fixação.
[9] Ocorrida entre 1884 e 1885.
[10] No caso, lembremos a figura do branco pobre na situação do agregado, presente nas famílias do século XIX.
[11] Autoridades da República tacharam João Henriques de monarquista e lhe tiraram o emprego na Tipografia.
[12] Nesta prática, nossa principal referência é Machado de Assis.
[13] Não se perca de vista que “assimilação” e “esterilização” são, histórica e sociologicamente, termos em parceria correlata. Na sua vez, “assimilação” é termo que, etimologicamente, aparenta-se com o que é “similar”, com o que é, na extensão, “semelhante”, podendo se perceber nele a ideia da hierarquia social.
[14] Amália morre no sétimo aniversário de Lima, isto é, ainda em 1888.
[15] Para esta percepção, a leitura do Diário íntimo é imprescindível, particularmente a das anotações de 1904.
[16] A biblioteca de Lima – chamada posteriormente de Limana – foi composta de 800 títulos. Continha títulos de literatura, história, sociologia, antropologia, biologia, medicina e outras áreas. Dela resistiram poucos livros.
[17] Para a percepção destes fatos, a leitura do Diário íntimo, já algumas vezes citado, é importante, fundamental.
[18] A Revolução Francesa eclode em 1789; é a maior de todas as revoluções burguesas ocorridas e há duzentos anos estudiosos se debruçam sobre ela sem conseguir abarcar todos os efeitos positivos que ela difundiu pelo Ocidente.