Em tempos em que elementos de nossa realidade ganham alusões ao apocalipse cristão, assistir Dark não viralizou a toa.
A série original da Netflix, é uma das mais assistidas da plataforma desde a estreia da 3a temporada e é também um dos assuntos mais comentados nas redes mundialmente.
Há de se reconhecer a inteligência rebuscada de Dark. Para além de entretenimento, é um ótimo exercício de raciocínio nessa fase de distanciamento social e limitações diversas.
Mas precisamos ser sinceras. É uma série bem difícil de entender e acompanhar. A gente se perde facilmente em meio a tantos personagens e passagens de tempo…
Alerta de spoiler.
“Tempo, tempo, tempo, tempo”
Dark, tem como protagonista justamente, o tempo. Mais precisamente, a relatividade do, ou a viagem no tempo.
Baseados em teorias e pesquisas científicas da área da física, inclusive a quântica, os personagens da série, moradores da cidade fictícia de Widen na Alemanha, onde há uma usina nuclear que movimenta social e economicamente o local, descobrem o que a ciência chama de,”partícula de Deus” , após uma explosão na usina em 1986.
Diante disso, acham uma espécie de espaço-tempo, ou portal, que ligaria dois momentos distintos. Essa passagem está de alguma forma ligada a explosão na usina e nos faz lembrar que na vida real, aconteceu um acidente, na Ucrânia, em 1986 na usina de Chernobyl.
A passagem no tempo em Dark, proporciona um salto de 33 anos para trás ou para frente. E apesar de muitas viagens por diversas épocas, os pontos cruciais para o desenrolar da trama se concentram em:
1953 – o inicio da usina nuclear em Winden.
1986 – quando a passagem no tempo se abre.
2019 – ano em que por conta do portal e do manuseio de substâncias atômicas, há a destruição do mundo. O apocalipse.
Complicado? Eu vou facilitar e te convidar a viajar no tempo comigo mas antes vamos entender o que é a famosa partícula sagrada.
A partícula de Deus ou bosóns de Higgs
A partícula de Deus é uma teoria real predita pelo físico britânico, Peter Higgs em 1964, que seria a chave para explicar a massa de todas as partículas elementares.
Em minhas palavras e de forma bem resumida e simplória, compreendo que a teoria de Higgs, explica que quando o Universo nasceu, após o Big bang, num estágio embrionário do Cosmos, nada tinha peso ou matéria. Tudo era apenas uma coleção de partículas subatômicas se movendo à velocidade da luz. As partículas interagiam entre si formando uma espécie de vapor de água que se transformou em água líquida.
Das diversas partículas que vagavam pelo universo, estavam os férmions, que são as quarks e os leptons, estes compõem quase toda a matéria existente, atuando como blocos criadores da realidade. Essas partículas precisavam de força para atravessar essa água. Esse processo é chamado de massa. Dessas, as partículas com afinidades se combinaram formando o átomo.
Ou seja, os bósons de Higgs são as partículas responsáveis pela interação dos férmions, cujo processo resulta em “matéria”, e matéria é tudo o que tem massa. Sendo portanto a partícula que origina todo o resto, a partícula sagrada.
Em Dark, a descoberta e incidência sobre o princípio da matéria, possibilita também a interferência no espaço e no tempo, demonstrando sua relatividade.
O passado, o presente e futuro existiriam paralelamente em dimensões diferentes de um mesmo espaço.
Consequentemente, nós também existiríamos ao mesmo tempo no passado, presente e futuro e poderíamos ao viajar no tempo, interferir ou não, sobre nossas histórias individuais e coletivas.
Seria como se vivêssemos num looping infinito (terminologia da informática que define, dentro de um programa de computador, uma situação que se repete infinitas vezes), de dimensões paralelas, em que nossas atitudes em uma delas serve como gatilho para as atitudes na outra.
Traduzindo, uma espécie de labirinto atemporal de nós mesmos.
Tão confuso quanto instigante, caros leitores. Quem não gostaria, com a experiência que tem hoje, de refazer uma situação passada? Ou de ouvir um conselho do seu eu futuro, que já sabe como as coisas se desenrolaram? Viajar no tempo.
E se fosse realmente possível viajar no tempo?
Já sentiu aquela sensação de deja vu? Como se tivesse falado, sentido ou vivido antes, o que está acontecendo agora? E se não fosse apenas uma sensação oriunda de uma falha cerebral, que faz com que os fatos que estão acontecendo sejam armazenados diretamente na memória de longo ou médio prazo, sem passar pela memória imediata? E se realmente já vivemos tudo isso em outra dimensão?
Não temos essas respostas ainda mas possuímos o rico instrumento da imaginação.
Vamos saltar 33 anos para trás!
Como seria reviver nossos amores e dores? Conseguiríamos evitar por exemplo a perda de um ente querido? Ou pelo menos poder abraça-lo novamente?
E coletivamente? Quais seriam nossas possibilidades?
33 anos atrás. 1987, período de redemocratização brasileira.
A esperança de superarmos as feridas de tempos sombrios, chegava em fevereiro, abençoada pela campeonato, naquele carnaval, da Estação Primeira de Mangueira, e consolidada pela Assembléia Nacional Constituinte, instalada no mesmo mês, pelo presidente José Sarney. Nasceria a Constituição de 1988 que diz que todos somos iguais e promulga nossos direitos.
No rádio ou em LP, uma mistura de, who that girl (Madonna), que país é esse (legião urbana), o amor e poder (Rosana), bad ( Michael Jackson) e homem primata (titãs), embalava passos de um recomeço que ansiava pelo distanciamento dos porões da tortura. Ensaiávamos, vestidos em roupas coloridas e com ombreiras. uma dança que pedia por paz e liberdade. A dança da esperança democrática.
Mas diante do caos de 2020, em meio a uma gravíssima crise sanitária e política, o que diríamos à sociedade de 1987 para evitarmos testemunhar atualmente, essa movimentação retroativa que revisita os tais porões sombrios de nosso passado recente ?
Quais caminhos poderíamos propor ao nosso passado para não elegermos essa mística de proposta de econômia liberal e salvação religiosa. Propagada e enfatizada por discursos populistas, colonialistas e coronelistas, gritados sem o menor constrangimento nas ruas, igrejas e redes sociais. Numa postura faraônica e deslumbrada de heroísmo judaico cristão?
Se pudéssemos viajar no tempo, voltar ao passado, como nos salvaríamos de uma sociedade escancaradamente, racista, machista e elitista que nos afasta do pressuposto de um processo democrático pautado na perspectiva da promoção da igualdade, ao invés de assistirmos o agigantamento desumano de nossas desigualdades?
Vemos hoje, a democracia ameaçada por uma elite branca que ataca o legislativo e o judiciário com a empáfia de casa grande.
Sociedade pré conceituosa, não avança em nenhum sentido. Precisamos ter isso em mente se quisermos um futuro diferente.
Nesse momento seu eu do futuro, pode estar de alguma dimensão, conversando com você, enquanto lê esse texto. Aconselhando-o a voltar ao passado e revisar cada erro, sem medo e disposto a luta. Esperando que suas atitudes de hoje entreguem a ele, 33 anos à frente, em 2053, um mundo menos desigual no que tange raça, gênero e classe.
A esperança do seu eu passado foi entregue ao futuro, ambos precisam de você. Não de suas frases de efeito nas redes sociais mas de uma prática cotidiana comprometida com a ruptura das estruturas excludentes.
A viagem no tempo já nos pertence e é acessível.
Inspirados na rica musicalidade da década de 80 e mergulhados em um dos piores momentos da história mundial, confessemos nosso cansaço na poesia de Gil, “Não me iludo , tudo permanecerá do jeito que tem sido.”
Mas não deixemos de lado a inquietude de Renato, “Nas favelas, no Senado, sujeira pra todo lado, ninguém respeita a Constituição mas todos acreditam no futuro da nação(…)”
Podemos reagir ao negacionismo de uma sociedade adoecida e caótica e construírmos uma realidade diferente. O passado nos dá todas as ferramentas para a reflexão e reconstrução social democrática. Sabemos de onde viemos e os caminhos que percorremos. Em nossas mãos está o que virá. É tempo de luta. Lutemos.
Título: música tempo rei, Gilberto Gil, 1984. Imagem destacada: divulgação Netflix, série Dark. Referências: revista Super interessante, “A partícula de Deus” , agosto de 2018, por Rodrigo Resende. Revista Com ciência,”Uma única teoria que explica (quase toda) a matéria do universo, outubro de 2019, por Mariana Hafiz. Wikipédia, bóson de Higgs.