Ainda hoje no mundo contemporâneo, os afro brasileiros lidos como negros estão impressos no imaginário como inferiores, negando nossa presença nos lugares de poder e ou nos invisibilizando. Diante disso os processos curatoriais, coletivos de artistas e ações educativas realizadas por pessoas negras, assume o desafio de ressignificar estas representações, “re-apresentando” as influências e contribuições desse povo, presentes na identidade e representações artísticas negras para a contemporaneidade, extrapolando o imaginário da escravidão, que reduz a leitura dessas contribuições.
Para além disso estes atores sociais tem o papel importante de visibilizar artistas negras e negros, dos mais diversos lugares de investigação artística, aproximando artistas de diversos territórios através de ações coletivas e contribuem para que os espaços de arte se tornem mais democráticos.
Assim surgiu o Coletivo Pretas InCorporações, criado em 2017 na cidade de Campinas, interior de São Paulo a partir da minha inquietação, diante da invisibilidade das artistas e pesquisadoras negras nos espaços. O meu incômodo maior era ser a única artista negra das exposições coletivas e salões que participei. Eu como uma militante e conhecedora das nuances estruturais do racismo, sabia que não estava sozinha por o acaso, mas por conta de um sistema nos invisibiliza e nega nossas capacidades criativas e intelectuais.
Foi em meio a essa inquietação que recebi um convite da Secretaria de Cultura para fazer uma exposição no mês de novembro daquele ano em comemoração ao dia Consciência Negra, foi neste momento que decidi fazer um chamamento público para artistas mulheres negras do Sudeste, propondo uma mostra coletiva, para minha surpresa houve mais de 50 inscritas, das quais selecionei 12 artistas de diversas cidades da região e uma artistas do Paraná.
A mostra de mesmo nome do coletivo foi exibida na Estação Cultura de Campinas em Parceria com a Secretaria de Cultura de Campinas, o sucesso foi muito grande, o que gerou convites para expormos em outros 3 espaços: Pretas inCorporações – Galeria PUC Campinas, Pinacoteca Diógenes Duarte Paes Jundiaí e Casa de Cultura Fazenda Roseira em Campinas.
Atualmente o coletivo conta com 12 artistas: 11 do estado de São Paulo, 2 de Minas Gerais e 1 no Espírito Santo. Todas nós termos formação acadêmica, porém nenhuma de nós tivemos referências de artistas negras ou negros na história da arte, ou em qualquer outra disciplina. Para além de ocupar os espaços, nós temos promovido discussões atuais sobre a arte, a partir de referências teóricas e artísticas afro centradas.
Pretas inCorporações vem oportunizando ao público afro indígena representações artisticas que elevem suas imagens, antes retratadas por códigos que diminuem e ou oculta a nossa humanidade.
Em pouco mais de dois anos já desenvolvemos cinco exposições coletivas, mostras individuais, participamos de residência artística, e festivais de arte.
Somos o primeiro coletivo de artistas visuais negras da região de Campinas e um dos poucos de São Paulo e do Sudeste do Brasil.
Os espaços de arte ainda segue em passos lentos na direção ao reconhecimento da qualidade das obras de artistas negros. Atualmente alguns espaços têm aberto as portas para curadores negros que trazem consigo projetos que visam rePosicionar e emancipar as artes tradicionais e contemporânea africana e da diáspora, reivindicando para além da representação, “Representatividade”. Nessa perspectiva, fazer falar coletivamente o que é “mudo” e “invisibilizado”, sem, com isso, restringir as potencialidades de sentido que cada obra individualmente possui, de forma sensível a discussões espinhosas e atuais, como a revisão de uma história da arte marcadamente branca e a falta de representatividade negra nos espaços de prestígio.
Diane lima afirma, “sujeitos potencializados, eles se enunciam contestando a dívida histórica, as categorizações às quais foram submetidos, às ausências dos artistas negros e a invisibilidade da produção” (LIMA, 2017, P. 138).
No ano de 2018 completou 130 anos da abolição da escravidão, também foi marcado por duas exposições de grande importância a primeira foi a “Histórias afro-atlânticas” (Curadores) Adriano Pedrosa, Ayrson Heráclito, Hélio Menezes, Lilia Moritz Schwarcz e Tomás Toledo que apresentou uma seleção com 850 obras, do século 16 ao 21, em torno dos “fluxos e refluxos” entre a África, as Américas, o Caribe, e também a Europa. Dialogando as culturas visuais dos territórios afro-atlânticos, suas vivências, criações, cultos e filosofias.
A segunda mostra foi “Ogbon Itan, a arte e a história das áfricas no Brasil” sob minha curadoria,i apresentada na cidade de Campinas a última cidade no mundo a abolir a escravidão, igualmente é a que possui o maior acervo de arte africana da América Latina “Instituto Cultural Babá Toloji” validado pelo antropólogo congolês Prof. Dr Kabengele Munanga. A exposição Ogbon Itan propôs a conexões identitárias profundas entre a África e o Brasil africano, através da exibição 57 obras tradicionais e contemporânea vindas das diversas regiões africanas.
As mostras se tornaram marco em numero de publico negro nos espaços onde foram exibidas, o que demonstra a carência de representatividade para este público nos espaços de arte. Reconhecer a contribuição importante deste público que representa a maioria da população do país, é responsabilidade de todos, devendo legitimar suas contribuições históricas para construção do país, valorizando e inserindo-os de forma democrática. Ana Mae Barbosa afirma que a arte “supera o estado de despersonalização, inserindo o indivíduo no lugar ao qual pertence” (BARBOSA, 1998, p. 16).
Os artistas negros, curadores e educadores ocupam lugar importante a resgate identidade e para ampliar o conhecimento e senso crítico em relação à sociedade que vivemos. Não é uma missão fácil porém assumir essa responsabilidade é seguir os passos de quem nos antecedeu e que tornou possível ocuparmos este lugar. Criar essa ponte entre público negro e periférico e museu, é muito complexo, porém necessária, para tanto é preciso assumir o abismo existente entre eles e voltar o olhar para o sistema colonialista.
Para Hall, muitas estratégias discursivas foram típicas de um regime racializado de representação que associou os negros à natureza, para naturalizar as diferenças culturais. Para o autor, a lógica dos regimes racializados de representação estava em pregar e perpetuar a diferença “Se as diferenças entre brancos e negros são “culturais”, então eles são receptivos à modificação e à mudança.. A “naturalização” é, portanto, uma estratégia representacional destinada a fixar a diferença e assim garanti-la para sempre. (HALL, 1997, p. 244-45).
Segundo o autor, as representações estereotipadas do “outro” quando apresentadas sem indagação, acabam sendo naturalizadas e transformadas em “verdades”. Para o “ser negro” está falta de análise nas representações das imagens produzidas por não negros marcaram a falta de reconhecimento identitário. Artistas como Debret, Diógenes Duarte Paes, foram foram grandes responsáveis por este tipo de representação estereotipada, cada um no seu período histórico, porém ambos olhando para o corpo negro de forma objetificada e animalesca.
Diane Lima, pesquisadora e curadora, fala que a importância das análises culturais das representações racializadas do “outro” está em salientar o modo como são culturalmente construídas essas “verdades” naturalizadas e permanentes, questionando os efeito causados aos afro-brasileiros. Sendo assim, criar estratégias representacionais produtoras de valores é importante para firmar um alicerce firme na construção um novo olhar para do “ser negro” para si próprio e do outro para com ele suas produções.
Sabemos que a maioria da obras até o século passado era desenvolvidas por artistas das elite 8s europeias ou herdeiros dela com a finalidade de valorizar a ideia de poder do branco sobre os demais. Neste sentido se faz necessário que as instituições de arte que possuam acervos ou não, criarem ações formativas dentro do seu educativos que reflitam sobre estas representações e como dialogar essas obras na contemporaneidade.
Ana Mae Barbosa (2010) fala da necessidade de um compromisso com a diversidade cultural através da Arte-Educação, não focando apenas em códigos europeus e norte-americanos, dando mais atenção à diversidade de códigos em função de raças, etnias, gênero, classe social e cultura local. Para a autora quando se fala em cultura é possível constatar que quase sempre, apenas o nível erudito é validado ou admitido na escola, como por exemplo, “Tarsila e Portinari”.
A autora enfatiza que as culturas de classes sociais desfavorecidas economicamente são ignoradas pelas instituições de educação, inclusive pelos que estão envolvidos na educação destas classes. Paulo Freire afirma que a mobilidade social depende da interrelação entre os códigos culturais das diferentes classes sociais e o entendimento do mundo depende de uma ampla visão que integre o erudito e o popular. (BARBOSA, 2010 P.3)
Intitulados de “templos da cultura” por Ana Mae Barbosa, os museus, preservam a cultura erudita como seu principal valor, lugar onde a maioria do público é composto por pessoas que já possuem uma formação cultural e que compõe o seleto mundo da classe A economicamente favorecidas. Enquanto o público periférico não se sente pertencente dentro destes espaços, as construções imponentes, as localizações geográficas, as obras que pouco dialogam com a maior parte das pessoas, a falta de educação em arte na educação formal e o pouco interesse das instituições em estabelecer relação com esse público.
Para que haja realmente um trabalho de formação cultural inclusiva é preciso em primeiro lugar, tirar todos os estigmas pejorativos e elevá-los à condição de humanidade, seres capazes de socializar, de produzir conhecimento, apreciar e de pensar. Estabelecendo relações de tempo e lugar, através de ações interdisciplinares que leve a uma arte educação comprometida com o social.
A discussão de temas como raça, gênero, classe social, espaço geográfico, educação, religião, etc., possibilitar uma maior compreensão e sensibilidade aos problemas e preconceitos, auxiliando a libertar o pensamento discriminatório em relação a pessoas de diferentes culturas, criar uma percepção dos valores e cultura do outro e uma compreensão de que em nossa vida participamos de mais de um grupo cultural.
Concluo esperançosa de que práticas artísticas, educativas e formativas como o projeto Experiências Negras idealizado pelas profissionais Luciara Ribeiro e Jordana Braz da equipe de Projetos educativos do Instituto Tomie Ohtake seja nosso “Tempo de Cura1”. Para que possamos ressignificar os valores usurpados, dando visibilidade às produções e artistas negros e negras. Nos tornando seres emancipados e protagonistas da nossa própria história.
Andrea Mendes/Curadora Independente e Artista Visual
Bibliografia:
LIMA, Diane. Fazer Sentido para fazer sentir: Ressignificações de um corpo negro nas práticas artísticas contemporâneas afro-brasileiras. (dissertação de mestrado 2017, PUC São Paulo)
BARBOSA, Ana Mae.(Org). – Arte/educação contemporânea: consonâncias internacionais. São Paulo: Cortez, 2010.
HALL, Stuart. Identidade Cultural e Diáspora. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n.24, p.68-75, 1996.
GUIMARÃES, Maria Eduarda Araújo. Transpondo as Fronteiras da Periferia. In: ANDRADE, Elaine Nunes de (Org). Rap e educação, Rap é educação. SP: Selo Negro, 1999. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=akqVPv9XJ88C&pg=PA39&hl=pt-BR&source=gbs_toc_r&cad=4#v=onepage&q&f=false>. Acesso em: 29 de agosto de 2019.
1 Termo usado por Diane Lima em sua dissertação de mestrado fazendo referência ao filme Tempo de Cura
Foto de capa: Harmonia Rosales
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