No dia em que se celebra a Abolição da Escravatura no campo formal das leis do Estado, o Coletivo Democracia Corinthiana estabelece o debate sobre o tema e entrevista o professor Juarez Xavier, corinthianista, acadêmico prolífico, um dos mais conceituados pensadores brasileiros no campo da negritude, das relações raciais e da cultura como expressão da herança étnica. Confira a conversa!
Walter Falceta Jr – Mais um 13 de Maio, e a gente pergunta: o Brasil ainda é um país racista? Como esse racismo se exprime na sociedade brasileira?
Juarez Xavier – O Brasil articula o preconceito racial, que é um mecanismo de retroalimentação da destruição da autoestima e da geração do auto-ódio.
Articula também a discriminação racial, que é a *segregação epistêmica, econômica, social, cultural e política da população negra.
Neste país, vigora ainda a necropolítica, atestada pelos altos índices de morbidade da população negra. Os negros representam 71% das vítimas de homicídio no Brasil.
Em suma, o Brasil é um estado racista, misógino, classista, que ainda mata negros, mulheres, lésbicas, gays, trans e pobres.
Trata-se de uma política perversa, que rende satisfação a uma burguesia escravocrata e também àquela parte da classe média que ainda vive atolada até o joelho na lama da escravização.
Walter Falceta Jr – Em sua visão, o que representou historicamente a chamada “Abolição da Escravatura”, em 13 de Maio de 1888?
Juarez Xavier – Representou o ponto de ruptura daquilo que o sociólogo Clóvis Moura chamou de quilombagem: o conjunto das lutas negras de mais de 350 anos contra o estatuto da escravização.
Essa ação reunia as microrrebeliões e as macrorrebeliões, que tinham origem nos quilombos e em outros núcleos de organização social.
Essas intervenções desgastaram de forma permanente a máquina da escravização, ou seja, o dispositivo de destruição dos corpos negros.
Essas lutas dos negros impuseram o 13 de maio, contra a vontade da maioria escravocrata, que lutou de todas as formas para, após a abolição, manter negras e negros atados à miséria e à desigualdade abissal.
Walter Falceta Jr – O que ocorreu com os “libertados” na sequência? A situação do povo negro no Brasil mudou de fato?
Juarez Xavier – O 13 de maio é um ponto de inflexão, mas não a ruptura completa com a desumanização sistemática e a segregação compulsiva.
A política de embranquecimento adotada na segunda metade do Século 19 tinha dois vetores estratégicos:
1. A criação de um estado que assegurasse, a partir da coerção e da persuasão, a arquitetura de uma sociedade de supremacia racial branca, patriarcal e capitalista.
2) A execução de uma política eugenista de genocídio, etnocídio e epistemicídio da população negra brasileira.
Por isso, exige-se a carbonização desse Estado se realmente buscamos o exercício pleno da humanidade para negras e negros. Ele produz a destruição em escala industrial de jovens negros, como atestam os números do mapa da violência.
Hoje, a cada 23 minutos, como atesta a ONU, morre um jovem negro no Brasil.
Walter Falceta Jr – Como você vê a questão do racismo e, particularmente, do negro na atual conjuntura política do Brasil? O governo Bolsonaro contribui para o retrocesso?
Juarez Xavier – A escritora norte-americana bell hooks (em minúscula mesmo!) afirma que a luta negra revolucionária é a alternativa à loucura.
Em nosso contexto, o governo protofascista do país representa a aceleração do processo de destruição massiva da população negra em estado puro.
Este governo combina a ação subjetiva do racismo, ou seja, uma narrativa baseada na neutralidade racial, e uma ação objetiva, destinada a extinguir as políticas públicas conquistadas desde 1988.
É um governo de perversidades que tem por objetivo negar o passado, destruir o presente e inviabilizar o futuro da população negra.
Walter Falceta Jr – De qual forma os negros brasileiros podem constituir uma ação permanente na luta contra o racismo e pela construção de um modelo de igualdade?
Juarez Xavier – Nos últimos 40 anos, o movimento negro compreendeu as dimensões do suprematismo racial branco e suas consequências materiais e subjetivas.
Dessa forma, geraram-se conhecimentos que desmontaram a fabulação da democracia racial. Nesse campo, as mulheres negras, em especial, forjaram o conceito de interseccionalidade como nova episteme, combinando as dimensões de raça, gênero e classe.
Esses agentes da mudança elaboraram políticas públicas e inventaram plataformas de ação política. Desenvolveram o conceito de identidade de maioria social e constituíram dispositivos múltiplos de ação e enfrentamento em todos os territórios negros, como nos espaços sagrados, como os candomblés, e nos espaços sociais da cultura, como aqueles dedicados ao hip hop e ao funk.
Como me disse uma jovem, há um ano, em Paraisópolis: a revolução será negra, fêmea e vinda da periferia! Creio que este seja o legado dos últimos 40 anos.
* O racismo epistêmico é a forma fundacional e mais antiga do racismo, constituído para disseminar a falsa tese de inferioridade dos povos não-brancos (matriz biológica europeia).
** Juarez Xavier possui graduação em Comunicação Social Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1990), mestrado (2000) e doutorado (2004) pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM/USP) com ênfase em Comunicação e Cultura. É pesquisador do Centro de Estudos Latino Americano sobre Cultura e Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de S. Paulo (Celacc/ECA/USP) e do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro da Universidade de S. Paulo (Neinb/USP). É professor da Universidade Estadual Paulista na Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. É coordenador executivo do Núcleo Negro UNESP para a Pesquisa e Extensão (NUPE).
*** Nas fotos, Xavier com o ex-goleiro Tobias, do Corinthians, campeão paulista em 1977. Retratada também sua participação no evento da Consciência Negra, realizado pelo Núcleo de Estudos do Corinthians (NECO). Em umas das imagens, ao lado do retrato de Tatu, craque negro do Corinthians na década de 1920.
Nota: Entrevista concedida ao jornalista Walter Falceta Jr., conselheiro do Coletivo Democracia Corinthiana.