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BlacKkKlansman: ou o avesso, do avesso, do avesso.

Num cinema eminentemente branco, a minha experiência como homem Preto é a de ser um infiltrado. Calma. Pausa. Voltem a fita por favor. Ah sim… Então, em um mundo de privilégios, quando eu, homem preto, consigo acessar algumas dessas vantagens, geralmente é por estar em um universo branco, e é usualmente quando eu me sinto como um infiltrado. E naquela sala, de um dos meus cinemas favoritos na cidade de Belo Horizonte, o Cine Belas Artes, eu era mais uma vez, um infiltrado.

Em um mundo de reflexões equivocadas, mal intencionadas ou obtusas, se posicionar, analisar, refletir sobre as coisas no âmbito da cultura e suas relações com o mundo é algo importante. Mas, antes que eu seja cobrado por algo que eu não tenha realizado, é pertinente dizer: aqui temos uma reflexão de um homem preto que não é ligado ao espaço do cinema, em sua técnica. Me interessa o conteúdo. Por isso, peço desculpas pelo limite de algumas observações.

Em conversas com amigos e amigas, eu disse que Spike Lee voltou aos cinemas dando várias respostas: aos amantes de um cinema eminentemente branco, que sempre ressaltou um lugar afônico de personagens pretos, Donald Trump e sua política racista e também a militância preta. Mas houve outras tantas coisas. Mas, muita calma.

A lente embranquecida. Ou o “sempre foi assim”.

A primeira cena do filme já é uma provocação. Sim, uma cena do premiadíssimo “E o vento levou” a qual vemos Scarleth O’Hara, procurando pelo Dr. Meade, em meio a um cenário de destruição causados pela guerra civil estadunidense, enquanto a câmera abre e nos apresenta a bandeira dos confederados. A escolha, obviamente não é gratuita, afinal, o filme constrói uma narrativa que apaga o corpo negro, inclusive suavizando (ou romantizando?) os efeitos da escravidão. Spike Lee apresenta um dos diálogos presentes nessa proposta: uma leitura contundente ao cinema de seu país. Afinal, não é gratuita a crítica ao filme “The Birth of a Nation”, para alguns um “clássico” do cinema, mas perverso em sua narrativa: a construção subalternizada do corpo negro, a celebração de alguns heróis, com os quais a Kun Klux Klan se identifica. Parece que “E o vento levou” e “The Birth of a Nation” dizem coisas muito parecidas.

 

Cena do filme “e o vento levou”

Voltando ao filme, BlacKkKlansman, traduzido como “Infiltrado na Klan” que conta a história de Ron Stallworth, policial recém chegando em Colorado Springs na década de 1970. Ron era o primeiro, sim o primeiro policial negro na história da cidade. A trama gira em torno de algumas ações realizadas pela Kun Klux Klan, que acabam sendo investigadas pelo policial recém chegado na cidade que conta com o auxílio de um policial branco, Flip Zimmerman. Os dois realizam uma operação de investigação sobre cada passo dessa organização.

Logo em sua chegada, na sua entrevista com o seu superior e com o prefeito (?) é advertido sobre as dificuldades que encontraria em um mundo branco e na polícia local. Não demora muito. Ron é destacado para um serviço simples, almoxarifado (eu já trabalhei em um almoxarifado. E com todo respeito aos almoxarifes, não desejo isso para ninguém). Os policiais chegavam e sempre pediam o arquivo do “neguinho”. Sim. Dito exatamente dessa forma, sem nome, descrição física, sem detalhamentos. E  nesse sentido, me parece interessante lembrar que, por exemplo, a morte de Travion Martin nos Estados Unidos, ou a prisão de Rafael Braga possuem a mesma motivação: corpos negros são invisibilizados, descartáveis, são aqueles que não tem nome.

Notem a diferença (ou o reverso da moeda…) entre os brancos, aquele que não tem raça, mas são aqueles que definem pretos e pretas em narrativas embranquecidas, que construíram parte de nosso imaginário e nossa realidade. Preto construído  para sempre ser mais um, nem precisamos saber seu nome. Enquanto via o filme, o tempo todo eu me lembrava do documentário “Eu Não sou seu negro”. Uma passagem do documentário parece nos ajudar a pensar nessa invisibilidade e na branquitude como invenção:

“[…]Deixando de lado todos os fatos físicos que se pode citar, deixando de lado o estupro, o assassinato, deixando de lado o registro sangrento de opressão, coisas com as quais já estamos bem familiarizados, o que faz ao subjugado é destruir a sua noção de realidade. Isto significa, no caso do negro americano, nascido naquela república reluzente… No momento em que você nasce, como não sabe de nada, todos a sua volta tem o rosto branco, e como ainda não se olhou num espelho, você acha que também é. É um grande choque quando, aos 5, 6 ou 7 anos, você descobre vendo Gary Cooper matar os índios enquanto você torce pra ele, que os índios eram você. Você tem um grande choque ao descobrir que o país que é a sua terra natal, e para o qual você deve a sua vida e a sua identidade, não criou em todo seu sistema de realidade um lugar para você.”

Mesmo as identidades raciais brasileiras e estadunidenses possuindo construções singulares, é possível traçar alguns paralelos. Não com a intenção de finalizar debates, mas sobretudo, para construir novas perguntas em relação a ambas realidades. Um desses paralelos está justamente no silêncio, no apagamento como (im)possibilidade de (in)existência. Lembro de uma reflexão do professor Sílvio Luís de Almeida, e a ela adiciono a observação de um amigo investigador da divisão de desaparecidos da Polícia Civil, meu amigo Lucas Ed. (sim, aquele lindo do canal Melhores do Mundo): o corpo negro não possui rosto, ou seja, uma pessoa negra desaparecida, dificilmente é reconhecida e raramente sai dessa condição de invisível. Enquanto eu via os policiais chegando para buscar o documento de mais um “neguinho” me lembrava de “Capítulo IV Versículo III” dos Racionais, que mostrava isso, a forma como esse mesmo mundo pode transformar um preto tipo A, num neguinho.

Flip e Ron: responsáveis pela operação no interior da KKK

Spike nos apresenta uma narrativa em que  algumas coisas, que sempre são colocadas em lugar de poder, sem questionamento, guardam bastante dessa mesma leitura sobre pretos e pretas, obviamente em um outro grau de profundidade. Quando Ron e Flip estão conversando sobre temas culturais, coisas aleatórias, falam sobre o filme “E o vento levou” e a forma como a personagem Mama, interpretada por Hattie McDaniel, primeira atriz negra a vencer o oscar, no ano de 1940, retrata a ideia de uma mulher negra submissa, sem vontade própria. Ou seja, algo muito presente nas produções culturais (livros didáticos, corações e mentes) aqui e lá. Mas ainda cabe a reflexão do Baco Exu do Blues:

“Eles querem um preto com arma pra cima

Num clipe na favela gritando cocaína

Querem que nossa pele seja a pele do crime

Que Pantera Negra só seja um filme

Eu sou a porra do Mississipi em chama

Eles têm medo pra caralho de um próximo Obama

Racista filha da puta, aqui ninguém te ama

Jerusalém que se foda eu tô a procura de Wakanda, ah”

Parece que Spike e Baco também dizem coisas parecidas. Aliás, seguimos dizendo.

A força da resistência, ou as vozes que ecoam pelo tempo

O filme possui outra força em sua narrativa, afinal, ele consegue mostrar como vozes dissonantes, que mostram diversidade (de corpos, experiências, gostos, personalidades…) entre pretos e pretas, em diferentes gerações, mas também podem apontar em que momento nossas dores (sim, nossas) se encontram.

Assim, o protagonista deixa de ser um policial que lida com almoxarifado para ser um policial infiltrado. Aqui notamos uma contradição, que ainda não somos capazes de captar e fazer boas leituras: Ron passa a atuar como infiltrado e seu primeiro trabalho é observar uma reunião de pretos e pretas mobilizados na luta anti racista em sua cidade, justamente no momento em que uma importante liderança ligada ao partido dos panteras negras, vai fazer uma fala para a comunidade negra de Colorado Springs. Spike nos convida a pensar na complexidade da sociedade negra dos EUA, mostrando que ocupam lugares diferentes, supostamente opostos e, inclusive, sua leitura soa como uma crítica a alguns setores dos movimentos que simplificam os diferentes lugares ocupados por pretos e pretas. Existem outras leituras necessárias, concordando com ela ou não.

Mas, algo que me parece interessante (e muito tocante) é a forma como o discurso de Stokely Carmichael acaba envolvendo Ron e colocando-o em um lugar de reflexão. Mas não pela “mudança”, não em um sentido romantizado, mas para provocá-lo a pensar nas coisas que ele faz e fala, no seu lugar como policial. De novo, não quero bater martelo, quero trazer reflexões. É marcante a forma como o discurso do grande líder dos Panteras Negras é muito bem registrado. Em vários momentos, sua voz, suas reflexões sobre o racismo institucional, a violência policial e auto defesa é realizado mostrando o rosto das várias pessoas presentes naquele evento. Inclusive o impacto do som, das pessoas em silêncio, refletindo cada frase em voz alta, torna a cena ainda mais marcante.

Existe algo que sempre acho lindo notar em nossas militâncias. Afinal, ela é feita sim pela radicalidade (radicalidade entendida da forma como Angela Davis ensina. tocar a raiz da contradição), mas também pela poesia, pela beleza da música. A cena passada num bar, na pista de dança, com aquela influência do Soul Train, nos convida a pensar na famosa fala de Kathleen Cleaver, na qual ela fala da importância do orgulho de pretos e pretas, do orgulho expresso em nossos cabelos, roupas, traços corporais…

Outra leitura presente no filme é aquela que homenageia uma série de filmes,  da cultura estadunidense, os filmes blaxploitation. Esses tornaram-se uma importante forma de expressão da cultura negra, da possibilidade de inserção de atrizes, atores, roteiristas, diretoras/as no mundo restrito do cinema. É interessante notar, que o movimento não é meramente representativo, afinal, todas essas produções são profundas em forma e conteúdo.

Um silêncio ensurdecedor, ou os equívocos de Spike Lee

O principal limite do filme está em uma das vozes do filme: a polícia. Existe um texto interessante sobre a trajetória do personagem principal, autor da narrativa que inspirou o filme. Ron Stallworth é uma figura controversa no que se refere a  sua relação com os movimentos negros. O diretor Boots Riley realiza várias críticas importantes ao filme, essas podem ser encontradas aqui e a repercussão de suas reflexões estão aqui e aqui.

As críticas de Riley são importantes, na medida que Spike Lee coloca a conduta policial como um “desvio de conduta”, reduzindo inevitavelmente a questão do “existem bons policiais na corporação”. E isso está expresso na última cena do filme, quando todos os amigos policiais se envolvem numa operação para prender o “mal policial”.

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Boots Riley (esquerda) fez críticas pertinentes ao filme de Spike Lee

Essa leitura de Spike Lee me parece problemática, na medida que se esquece da ideia que o próprio Stokely Carmichael nos ajuda a pensar: o racismo institucional. Ou seja, a polícia, uma instituição que lida com a segurança pública é a principal instituição responsável pela morte população negra nos Estados Unidos. Além disso, não é possível negar que a força policial foi utilizada para desmobilizar vários movimentos sociais no país. Isso sem contar que seria possível aprofundar o conceito da necropolítica pensado pelo filósofo camaronês Achille MBembe, para pensar que o estado possui gerência direta sobre vida e morte dos corpos negros.

Assim, um dos erros da narrativa está numa cisão impossível de ser realizada, se tratando da sociedade estadunidense. Não é possível que a realidade daquele país tenha cidadão racistas, como os grupos supremacistas, com linchamentos públicos, um cinema que contribuiu para a ascensão da Kun Klux Klan, mas que exime da culpa a sua polícia.

O fim e o início: ou o avesso, do avesso, do avesso

O racismo não pode ser encarado meramente como um inimigo a ser vencido, um ente. Obviamente os movimentos anti racistas pelo mundo, lutam pela sua superação, mas precisamos entender a sua construção e suas (re)configurações. Após um distanciamento, várias conversas, reflexões, me parece impossível simplesmente dizer se gostei do filme ou não. Aliás, isso não me parece importante. O mérito do filme é justamente o de nos ajudar a pensar na  complexidade do racismo, suas interlocuções com a realidade brasileira e possíveis pautas para o enfrentamento do racismo.

O filme possui muitas camadas, algumas foram mais simples de serem reveladas e compreendidas. Outras vão exigir um vagar, maior atenção, interação entre as pessoas envolvidas, num momento em que as realidades dos países são extremamente delicadas.

NOTA

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